segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Muros

Para lá dos muros encontrei um novo mundo. Um mundo onde reina o desespero, a tristeza e a solidão. Pessoas sem vontade de viver, sem coragem nem objectivos, pessoas sem ambição. Pessoas que não se sentem pessoas, pessoas como tu e como eu, no fundo, apenas e simplesmente pessoas. Um estágio de enfermagem num serviço de Psiquiatria permite-me entender estas pessoas, dando-me a oportunidade única de as conhecer. Protegido pela farda, entro nas suas vidas, com livre acesso aos seus passados. Tudo com uma facilidade que seria impossível em qualquer outro cenário, vestindo um outro papel. Um pouco de conversa, alguma atenção, e as histórias da vida são ali descritas ao pormenor que eu entender ser necessário. Curioso o facto de quando se precisa de ajuda nos sentirmos desinibidos para falar quando alguém nos quer ajudar.

Dentro dos muros sinto-me a crescer de dia para dia. Conviver com dezenas de vidas diferentes, faz-me reflectir sobre temas que nunca foram importantes para mim. Ao conhecer as pessoas, tento descobrir quais os factores que as trouxeram para o lado de cá, no fundo, desvendar que experiências e vivências as conduziram para o interior dos muros. Tento imaginar-me nas suas vidas, passando pelas mesmas coisas, com o objectivo de as ajudar a encontrar um rumo, uma estratégia para voltar para o lado de fora. Nem sempre o consigo fazer, mas ao imaginar-me nas suas vidas, vou guardando experiências que me ajudem a moldar a minha. Por isso me sinto a crescer, porque aprendo todos os dias as lições da vida, documentadas na primeira pessoa do singular.

Mas os mesmos muros que me facultam esta experiência, fazem-me reflectir sobre qual a sua função. Afinal, porque razão, existem muros em psiquiatria, muros que separam estas pessoas do mundo real? É uma questão para a qual podem existir muitas respostas, algumas coerentes até, mas que não são suficientes para eu compreender o fundamento dos muros. Afinal, não serão os doentes mentais, os pontos fracos da sociedade actual, sintomas da doença que afecta as famílias, os grupos, e as comunidades. Será que a sua doença é apenas e só orgânica, ou também fruto do mundo em que vivemos, dos valores e ideais que seguimos, daquilo que nos dizem e fazem, no fundo, não será uma consequência das relações humanas?

Como é que o tratamento para a doença mental insiste em afastar as causas da doença da pessoa doente tal como numa doença orgânica. Não se pode isolar a pessoa do seu mundo para que este não a afecte. É necessário sim, criar condições para que o seu mundo não agrave a sua doença. É triste quando nos sentimos bem isolados por muros. Quando alguém se sente protegido pelos muros é porque têm medo do que está do outro lado. Tento-lhes dizer que o mundo lá fora continua, que existem coisas lindas do outro lado, que do lado de cá é tudo fictício, e que mais cedo ou mais tarde têm que voltar para o lado de fora. Tentamos desenvolver estratégias e planos para se sentirem bem quando sairem, mas fim-de-semana após fim-de-semana, alta após alta, as pessoas voltam para dentro dos muros porque não se adaptam ao lado de lá, porque se sentem melhor deste lado, porque pura e simplesmente não conseguem viver as suas vidas.

Tudo bem, eu aceito a existência dos muros. Eles até têm uma função por vezes necessária, mas não nos limitemos a intervir do lado de dentro dos muros, é necessário actuar lá fora, pois só assim se vão acabar com os estigmas da doença psiquiátrica, reduzir os tempos de internamento, os internamentos recorrentes, os milhões de euros comparticipando antidepressivos e benzodiazepinas, e consequentemente melhorar a qualidade de vida, aumentar a produção, diminuir os custos, e acima de tudo, tornar as pessoas mais felizes.

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